Quando a Filosofia Bate à Porta
Rosana se considerava uma pessoa comum. Durante a adolescência, sua vida girava em torno dos estudos, seguindo o conselho do pai para "ser alguém na vida", uma frase muito usada pela geração anterior para incentivar o interesse pelo aprendizado, mas que hoje poderia ser questionada quanto ao seu verdadeiro significado.
Ao ingressar na universidade, além do conhecimento, experimentou também o despertar para o amor. Seus objetivos a médio e longo prazo passaram a ser visualizados e discutidos a dois.
Com a formatura, veio o casamento e, com ele, os filhos. A partir daí, sua rotina se estabeleceu entre casa e trabalho, enquanto o tempo restante era dedicado ao marido, aos filhos e às responsabilidades domésticas. Restava pouco para um livro, para a meditação ou para qualquer outro momento de atenção voltado a algo além das necessidades práticas da família. Ao refletir sobre sua situação, percebeu que essa também era a realidade da maioria dos amigos que se formaram na mesma época — salvo raras exceções daqueles que não se casaram. No entanto, entre esses, a única vantagem relatada parecia ser uma maior mobilidade. Assim, concluiu que "é assim que a vida é".
Nos poucos momentos em que teve contato com a cultura, seja por meio do teatro, do cinema ou dos livros, Rosana encontrou ideias que a fizeram pensar. Descobriu, por exemplo, que tanto a ecologia quanto a filosofia existencialista sustentam a ideia de que todos os seres estão interligados. Em uma peça de teatro ouviu que o ar que respiramos já passou pelos pulmões de incontáveis criaturas antes de chegar a nós. Nossas ações afetam outras pessoas e o meio ambiente, assim como somos afetados por eles. Essa interdependência nos lembra que não somos ilhas isoladas, mas partes de um organismo maior.
Embora não discordasse desse pensamento, Rosana não via aplicação prática nele. No dia a dia, o que realmente importava era garantir que a família mantivesse os custos sob controle. Uma vez alcançado esse objetivo, iniciava-se uma fase mais tranquila, que, inevitavelmente, levava à dedicação de tempo, energia e esforço para a acumulação de recursos a fim de enfrentar os desafios da vida — um caminho seguido pela maioria das pessoas. Apesar de estar em paz com essa perspectiva, temia que, no futuro, pudesse se deparar com uma crise existencial, percebendo que a luta e o acúmulo não trouxeram uma realização verdadeira.
Recentemente, conheceu no trabalho uma colega apaixonada por leitura. Para prolongar a conversa, pediu para dar uma olhada no livro que ela tinha em mãos. Ao abrir em uma página aleatória, deparou-se com a frase:
"Não é sinal de saúde estar bem ajustado a uma sociedade profundamente doente."
Aquilo a atingiu como um estalo. Intrigada, Rosana perguntou:
— Que frase impactante! Quem escreveu isso?
A amiga sorriu e respondeu:
— É de Jiddu Krishnamurti, um filósofo e escritor indiano que questiona profundamente os padrões sociais e a busca por segurança e conformidade. Ele nos convida a despertar para a realidade, a observar a nós mesmos e o mundo ao nosso redor com curiosidade e liberdade, sem julgamentos ou preconceitos. Sua filosofia nos inspira a buscar a verdade por nós mesmos, a questionar tudo o que nos é imposto e a viver de forma autêntica e plena.
A reflexão de Krishnamurti fez com que Rosana se perguntasse se o caminho que seguiu até então — baseado em repetição, sobrevivência e acúmulo — realmente a levava a uma vida plena ou apenas a encaixava em um modelo social automatizado.
Intrigada, decidiu buscar respostas e encontrou um antigo colega da universidade que havia seguido na área da filosofia. Durante o encontro, conversaram sobre suas vidas, e Rosana admitiu que, apesar de ser feliz com sua família, sentia uma angústia no fundo da alma, um questionamento sobre o sentido da vida que a fazia refletir se a existência era apenas isso. O amigo sorriu e disse:
— Rosana, você acabou de filosofar.
Ela riu e discordou:
— Não, não. Filosofia não trata desses aspectos práticos da vida. Veja Parmênides, por exemplo. Ele não estava preocupado com os anseios do povo, mas sim com o Ser, com o que é imutável. Filosofia é para filósofos, não para pessoas comuns.
O amigo ponderou por um instante e respondeu:
— E o que é mais comum do que buscar sentido para a vida? Parmênides pode ter falado do Ser imutável, mas sua filosofia se originou da mesma inquietação que você sente agora. Todo pensamento filosófico nasce da experiência humana. Sócrates questionava até os conceitos mais básicos da vida cotidiana, mostrando que a filosofia está em tudo. E mais: se refletir sobre a própria existência não é prático, então o que é?
Rosana ficou em silêncio por um momento. Pela primeira vez, percebeu que a filosofia não era uma abstração distante, mas algo que já fazia parte de sua vida sem que notasse. Então perguntou:
— Jiddu Krishnamurti é filosofia? Então você está dizendo que eu tenho alternativas?
— Jiddu Krishnamurti não se encaixa no conceito tradicional de filosofia acadêmica, mas suas ideias possuem forte caráter filosófico. Ele não desenvolveu um sistema de pensamento lógico ou um conjunto de teses estruturadas como os filósofos clássicos e contemporâneos, mas suas reflexões abordam temas centrais da filosofia, como a natureza da mente, a liberdade, o autoconhecimento e a condição humana.
Seu pensamento tem influências do misticismo oriental e da crítica existencialista ocidental, e muitas de suas ideias dialogam com questões tratadas na filosofia, especialmente na ética e na fenomenologia. No entanto, Krishnamurti rejeitava rótulos, escolas filosóficas e qualquer tipo de autoridade intelectual, defendendo que cada pessoa deveria descobrir a verdade por si mesma, sem seguir dogmas.
— Sim, ótima escolha! Você deve ler Krishnamurti. E logo perceberá que já está no caminho. A prática filosófica pode ajudá-la a enxergar as possibilidades, a viver de forma mais plena e a encontrar sentido até na rotina. Não se trata de abandonar tudo, mas de refinar sua percepção.
Ao voltar para casa, Rosana refletiu sobre o que ouviu. Começou a ler mais, optou por iniciar com os livros de Krishnamurti, a prestar atenção em seus pensamentos e a experimentar pequenas mudanças em seu dia a dia. Compreendeu que o despertar não exige isolamento ou fuga da vida cotidiana. Poderia continuar sua rotina, mas com uma nova percepção, enxergando os desafios do dia a dia como parte de seu aprendizado e crescimento. Mais do que isso, percebeu que o processo não precisava ser solitário: poderia ser compartilhado de forma leve e natural com sua família, através de conversas, gestos de carinho e um novo olhar sobre as relações.
Ao olhar para sua jornada, Rosana percebeu que a filosofia não era tão abstrata quanto imaginava. Pelo contrário, foi justamente através dela que surgiu sua inquietude, sua capacidade de questionar e, sobretudo, sua vontade de buscar algo além da repetição mecânica da vida. Compreendeu que a filosofia não está apenas nos livros ou em debates acadêmicos, mas no ato de observar, refletir e transformar, passo a passo, sua própria existência.
Roni Martins
Enviado por Roni Martins em 22/02/2025
Alterado em 17/03/2025